Cenografia para “Martha”
estreado no Teatro Constantino Nery em Matosinhos

 
(equipa: Hugo Barros e Pedro Oliveira)




A partir de uma peça de Martha Graham, - “Lamentation”, à qual prestam de alguma forma tributo, Pedro Carvalho e Sara Garcia compõem um solo de dança, cujo único personagem se move invariavelmente em torno de uma cadeira (na peça de Graham era um banco).
O pedido inicial era claro, mas ia sendo ajustado nos ensaios, ainda realizados com uma qualquer cadeira que serviu como espécie de detector das incompatibilidades do seu desenho com o movimento que se pretendia desenrolar sobre ela. Uma cadeira que tivesse dois assentos e uma costa, dois sentares distintos, um com reclinação e apoio , à cota baixa, outro mais efémero e pontual, à cota alta . Esta demanda exigia um reforço da estrutura da cadeira, sem o qual o assento à cota alta, instalado sobre a costa do primeiro assento, poderia tornar-se demasiado instável, por se tratar de uma outra cadeira suspensa na mesma cadeira mas só ligada à primeira pela estrutura das costas. Essa dificuldade estrutural, juntamente com a observação do movimento dançado e o figurino dos clips de “Lamentation”, deram o mote para o desenho da cadeira e a sua disposição no espaço do palco.



 
 
 
O movimento era, em grande parte, lido pela (de)formação do figurino usado, uma espécie de túnica lilás elástica, dentro da qual a bailarina parece querer desconfinar-se, quebrando os limites espaciais aparentemente impostos pela roupagem, em vez de o serem pela flexibilidade muscular. Neste constante exercício plástico, lêem-se as linhas definidoras dos membros superiores e inferiores, apenas de um dos lados: o lado terminal para onde o tecido está a ser esticado. Ao contrário do habitual, vemos uma bailarina só com a definição do contorno exterior dos seus membros, tendo um aspecto quase líquido, invertebrado e animalesco, qual medusa, castrador da leitura estrutural do corpo, que é obtida só em momentos específicos da performance. Seria também uma túnica, neste caso carmim, que seria usada na peça a estrear. Dada a necessidade de reforço estrutural, propõe-se que a cadeira pudesse contrastar com a personagem e atribuir-lhe o protagonismo de grande mancha, ao ser dotada apenas com estrutura, de secção quadrangular e, suplementarmente a eixo, uma coluna vertebral de secção circular que suporta o segundo assento pedido. A cadeira, só vertebrada mas imóvel, pronta a receber o corpo movediço, líquido e instável, aumenta o seu sentido de profundidade e tridimensionalidade em palco, com a sua forma trapezóidal e as secções que diminuem da sua frente para o seu tardoz. Cenografia para “Discursos”, estreado no Teatro Municipal do Porto.

"A CRATERA"

 
(integrado na exposição "O que está de errado na (tua) casa?")




Dá-se a conhecer o projecto de remodelação dos dois pisos do atelierdacosta pelo registo fotográfico do tecto da sua cave - agora espaço de trabalho, antes de atendimento. Sobre a sua projecção, está desenhado o mobiliário actual e real, denunciando a acomodação do uso, mais ou menos espontâneo, ao único elemento organizador do espaço sem janelas: o tecto e o seu desenho da luz – seja artificial, seja natural, pela abertura de uma cratera na laje.
Antes do projecto, acumulavam-se, numa espécie de cartografia sintomática, desajuste e erro que instituíram (e instruíram) o projecto – já não havia margem para toda a inquietude das práticas do quotidiano sobre o espaço, sem recorrer a esse último expediente que é o projecto e a obra, reprogramadores da vida tal como ela já quer ser. O erro que é sintoma é rapidamente conversível, no projecto, em erro que é recurso, sobretudo se nos reportarmos à origem latina da palavra, e assim entendê-la como um dilema, um percurso contínuo e não linear de dúvida e experimentação, potencialmente errático; e, retomando a pergunta de partida, esta é uma maneira de a colocar que preferimos: talvez por sorrateiramente nos ilibar.
Sem nos apercebermos imediatamente, e sem a clareza exibida no conto dos Sapatos do Senhor Valéry(1), discutíamos permanentemente dois conceitos aplicados ao quadro do habitar pre-existente e o imaginado: o de lógica e o de convenção. No habitar da casa, o seu desequilíbrio pode significar perturbação – que experimentámos e que pretendíamos que o projecto renegociasse. Com a cratera ainda em execução, ouvíamos constantemente: “este buraco vai ser para umas novas escadas, não vai?”; mas talvez estas tenham sido formulações de desejo travestidas de convenção, nostálgicas da anterior relação directa e à cota da rua com o núcleo de trabalho do atelier. Surgiam também os alertas para a lógica – sempre bastante generalistas e criadores de espécies de aforismos indiferentes às diversas nuances - com especial enfoque no espaço de trabalho que “deveria ser sempre aquele com mais luz natural”. Também nas decisões construtivas ouvíamos: “depois com reboco no topo das vigas cortadas e fica rematadinho, não é?”. Pois bem, também aí encontramos campo fértil para a subversão negociada e deixamo-las com o corte à vista, denunciando o acto produzido sobre a estrutura.
Evitando declarar tabula rasa da existência e o consequente desperdício, procurávamos não fazer um mero makeup dos espaços só para conseguir mais intimidade no trabalho, só para obter mais luz no atendimento ou maior desafogo na entrada, mas ultrapassar essas barreiras politicamente impostas pela convenção ou por uma lógica convencionada. Essencialmente, luz e matéria foram alvo de uma transformação operada pela cratera que desmontou a homogeneidade dos dois pisos – um homogeneamente escuro e outro homogeneamente iluminado – para gerar atributos mais complexos e heterogéneos, desdobradores das possibilidades de vida no espaço.





(2) Tavares, Gonçalo M., A estranha Casa do Senhor Walser, in Pensar a Casa, Conferências da Casa, Associação Casa da Arquitectura, 2011